Chico Bento Moço e o teste de Bechdel-Wallace

Tabela 3x3. No quadrado do centro, há o título Chico Bento Moço e o teste de Bechdel-Wallace. Em cada um dos oito quadrados ao redor, está a imagem de uma personagem feminina de CBM, na seguinte ordem: Ferrugem, Fran, Yo, Anna, Dona Marocas, Rosinha, Dona Cotinha e Vó Dita. Todas elas estão sorrindo na imagem

O que é o teste de Bechdel-Wallace?

Em 1985, inspirada por sua amiga Liz Wallace, a cartunista Alison Bechdel publicou uma tira onde duas mulheres conversam sobre o que assistir no cinema. Uma delas diz que tem uma regra, e explica que só vê filmes que cumprem três requisitos básicos:
  • O filme deve ter no mínimo duas mulheres;
  • que conversam entre si;
  • sobre algo que não seja um homem.
Anos depois, esses critérios seriam usados para avaliar a participação feminina em obras de ficção, o que ficou conhecido como teste de Bechdel-Wallace.

Tira intitulada The rule, de Alison Bechdel. Em um letreiro retrô de cinema no primeiro quadro estão os créditos da tira: Dykes to watch out for presents the rule, with thanks to Liz Wallace. Na tira, duas mulheres, uma branca e outra negra, ambas de cabelos curtos e vestindo roupas casuais e folgadas, caminham lado a lado em frente a um cinema de rua. Enquanto elas caminham, é possível ver cartazes anunciando os filmes The mercenary, The barbarian e The vigilante, todos com a figura central de um homem branco e musculoso empunhando uma arma. Além disso, o letreiro do cinema anuncia os filmes Rocky VII e Rambo meets Godzilla. A mulher branca pergunta "Wanna see a movie and get popcorn?", ao que sua amiga responde "Well I dunno. I have this rule, see... I only go to a movie if it satisfies three basic requirements. One, it has to have at least two women in it... who, two, talk to each other about, three, something besides a man." Elas caminham por um tempo em silêncio, e a amiga branca possui uma expressão pensativa. "Pretty strict, but a good idea", diz a mulher branca. "No kidding" responde a mulher negra, "last movie I was able to see was Alien... the two women in it talk to each other about the monster." As duas andam mais um pouco em silêncio, cabisbaixas. "Wanna go to my house and make popcorn?" a mulher branca sugere. "Now you're talking", a outra responde.

Aplicando o teste em Chico Bento Moço

Não é novidade para ninguém que a revista do Chico Moço é protagonizada por um homem. Afinal, é o nome dele que está no título! Porém, também tivemos contato com várias mulheres marcantes durante a publicação, como a vó Dita, dona Cotinha, Rosinha, dona Marocas, Fran, Yo, Ferrugem, Anna e Sofia. Mas até que ponto elas (e outras personagens femininas) efetivamente participaram das histórias?

O teste de Bechdel-Wallace é uma das ferramentas que nos permite fazer essa análise. Para avaliar as 75 edições de CBM, eu usei os seguintes critérios:
  1. O roteiro deve ter ao menos duas mulheres, e elas devem possuir nome e falas;
  2. Elas devem conversar entre si;
  3. Sobre algo que não seja um homem.

Resultados e alguns outros dados

Das 75 edições analisadas, apenas 29 (38,7%) passaram nos três testes. Ainda, 55 edições (73,3%) foram roteirizadas exclusivamente por homens. Petra Leão foi a única roteirista mulher de CBM, sendo responsável por escrever 20 edições (26,7%), uma delas em coautoria com Marcelo Cassaro.

Gráfico de barras intitulado "número de edições aprovadas em cada requisito". São 61 edições aprovadas e 14 edições reprovadas no requisito 1. No requisito 2, 31 edições foram aprovadas e 44 foram reprovadas. Por fim, no terceiro requisito, apenas 29 edições foram aprovadas, e 46 foram reprovadas.
Gráfico de barras intitulado "número total de roteiros aprovados e reprovados no teste de Bechdel-Wallace, por roteirista". Petra Leão: 13 aprovados e 7 reprovados. Flávio Teixeira: 8 aprovados e 9 reprovados. Marcelo Cassaro: 5 aprovados e 16 reprovados. Edson Itaborahy: 2 aprovados e 8 reprovados. Felipe Marcantônio: 2 aprovados. Gerson Teixeira: 1 reprovado. Lancast Mota: 1 reprovado. Wagner Bonilla: 4 reprovados.
Gráfico de barras intitulado "percentual de aprovação de roteiros no teste de Bechdel-Wallace, por roteirista". Felipe Marcantônio: 100% de aprovação. Petra Leão: 65% de aprovação e 35% de reprovação. Flávio Teixeira: 47% de aprovação e 53% de reprovação. Marcelo Cassaro: 24% de aprovação e 76% de reprovação. Edson Itaborahy: 20% de aprovação e 80% de reprovação. Gerson Teixeira, Lancast Mota e Wagner Bonilla: 100% de reprovação.

Limitações e considerações

Admito que fiquei em dúvida em muitas edições que passaram nos testes 2 e 3. Dá para considerar uma conversa quando as personagens só trocam meia dúzia de palavras entre si numa conversa em grupo? Normalmente, o "diálogo" não passava de dois balões de fala para cada personagem sobre um assunto corriqueiro, e olhe lá.

Quadrinho de Chico Bento Moço. De costas para Ferrugem e Zé da Rússia, Yo está de braços cruzados e olhos fechados ao dizer "pois eu é que não vou bombar por causa de uma lenda urbana!". Ferrugem, com as mãos na cintura e também de olhos fechados, concorda: "nem eu!". Zé da Rússia complementa "eu também não..."
Seria isso um diálogo?

Querendo ou não, este é um teste subjetivo, e é necessário levar isso em conta ao avaliar os resultados.

Também precisamos ter em mente que uma obra reprovada no teste de Bechdel-Wallace não é necessariamente ruim ou misógina, e muito menos um reflexo do caráter do roteirista. Um exemplo é Vida na república, de Petra Leão: uma ótima edição, mas que não passou em nenhum dos critérios. Quase toda a história se passa em uma república masculina, de modo que é compreensível que nenhuma mulher participe da trama. Já a duologia Zona de contágio, de Wagner Bonilla, tem duas protagonistas marcantes e essenciais para o desenvolvimento do enredo: Rosinha e Sofia. Contudo, elas estão em núcleos diferentes e não interagem entre si em nenhum momento, o que não diminui a qualidade da obra.

Conclusões

O teste de Bechdel-Wallace é útil para observar uma tendência dentro de um contexto mais amplo (filmes de terror no geral, por exemplo), mas perde o valor quando empregado em uma única obra. No caso de CBM, cabe ao leitor tirar suas próprias conclusões sobre a qualidade de cada edição. E, como já foi dito anteriormente, a análise é subjetiva.

Das 29 edições que passaram no teste, destaco
  • A onça e o ouriço (Marcelo Cassaro e Petra Leão),
  • Diferente (Petra Leão),
  • Guardião da floresta (Petra Leão),
  • Agronomíadas (Petra Leão) e
  • Rosinha na África  (Petra Leão),
por serem roteiros que desenvolvem as personagens femininas fora de um contexto romântico. E creio não ser coincidência que todos foram escritos por uma mulher.

Com base nos resultados do teste, é possível afirmar que a participação feminina como um todo nas histórias de CBM foi insatisfatória. Lembrando que, da mesma forma que um roteiro não é misógino apenas por ter sido reprovado, ele também não é superior ou feminista por ter sido aprovado.

Aprofundando a análise, podemos nos perguntar se as mulheres da revista foram protagonistas na mesma medida em que os homens. E, quando houve participação, com que frequência ela estava relacionada ao relacionamento com um homem? (Grande parte do desenvolvimento de Rosinha e Fran, as duas personagens femininas com maior número de aparições na revista, esteve associado ao romance com o Chico, por exemplo). É necessário refletir e discutir sobre essas e outras questões de representação — como os estereótipos da mulher na geladeira, da donzela em perigo ou da rivalidade feminina, mas esse é um assunto para outro post.

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